Biografia

Bernardo Tavares da Silva Magalhães nasceu na cidade de Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, em 09 de maio do ano de 1950. Os “Tavares da Silva” têm origem em Pernambuco e os “Magalhães” no Rio Janeiro.

Convivendo num ambiente familiar onde cultura e arte tinham valor. A mais próxima referência sobre fotografia veio do tio Manuel Tavares, irmão de sua mãe que legou à família um importante acervo fotográfico, hoje sob sua guarda. Tinha 16 anos quando Michelangelo Antonioni inspirou toda uma geração de fotógrafos com o filme Blow-Up.

Essas duas fotos são os primeiros clicks do olheiro intuitivo que já tinha caído na rede da fotografia e não sabia: seu pé engessado após uma queda de moto e um registro de Ella Fitzgerald no palco do Teatro Municipal de São Paulo, em 1971.

Contracultura. Underground. Marginália.

A década de 1950 foi uma quarentena de cura e restauração pós-guerra. A onda era aproveitar os tempos de paz, mas uma nova guerra-fria fermentava nos porões da cultura um desejo de mudar esse mundo. E de fato a década seguinte varreu o planeta com a potência de um vendaval revolucionário. A rebeldia do Rock e a onda da contracultura, no final dos 60 e começo dos 70, desafiaram o coro dos contentes, o movimento hippie hasteou a bandeira paz&amor temperada no caldeirão libertário.

Foi nesse cenário que Bernardo Magalhães cismou de sair por aí fotografando a vida que se dispunha à sua frente. “Sair por aí com uma câmera na mão” era comando imperativo para que o aspirante fosse capaz de captar a realidade, atento ao pitoresco das ruas e ao registro social patente na cena urbana. São desse período – início dos anos 1970 – os primeiros registros do fotógrafo-andarilho-viajante: basicamente cenas de rua e tipos populares, sem esquecer a famosa viagem no “Trem da Morte” para Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, roteiro obrigatório para mochileiros e aventureiros da época.

O Brasil vivia sob ditadura militar. Bernardo sentiu a barra e optou por uma militância cultural que acabou encontrando ressonância no meio artístico e no movimento estudantil de Belo Horizonte. A capital mineira tinha pouco mais de 70 anos e começava a sentir o assalto das mineradoras em seu entorno e um caótico crescimento urbano.

No começo dos anos 70, Bernardo abandona o curso de Engenharia na UFMG e assume a fotografia. Faz o curso com Mauro Sérvulo na Galeria do Ouvidor e, junto com Fernando Ziviani, trabalha como assistente do fotógrafo Maurício Andrés no Curso de Fotografia oferecido pelo SENAC, em Belo Horizonte. Adota o codinome Nem de Tal, manifestava assim sua recusa a fazer parte do “sistema” – o mundo oficial.

O apelido foi sugerido pelo escritor Roberto Drummond, entrevistado no “Gol a Gol" N.1, jornal editado pelo DCE da Universidade Federal de Minas Gerais. No meio da entrevista, Roberto pergunta o nome do fotógrafo do jornal, que responde pelo nome familiar “Nem”. O escritor insiste: “Nem de quê? Tem que ter nome completo, Nem de Tal...”. O apelido ficou.

O Vapor

Nem de Tal trabalha como editor de fotografia no jornal “O Vapor”, apoiado pelo DCE da UFMG, que teve dez edições de janeiro a novembro de 73. Um jornal underground, na raia da contracultura, que driblava a censura do regime militar com uma abordagem poética e antropológica, delírios e viagens lisérgicas. A turma era da pesada: Marcos Benjamin, Roberto Wagner, Gilberto Abreu, Sérgio Gama, Rodrigo Leste, René Zeferino, Aloísio Morais, Humberto Guimarães, Luiz Maia, Cacau, e colaborações esporádicas de Luiz Vilela, Sérgio Santana, Durval Campos Guimarães, Alberto Vilas e outras feras.

Os trabalhos fotográficos publicados nesses periódicos nos dão conta dessa poética das ruas, engajada e militante. Câmera a tiracolo, sai pelas ruas de BH e registra o triste horizonte da capital mineira, a Serra do Curral detonada pelas mineradoras, o assédio imobiliário, o desmatamento urbano, pobreza, miséria, prostituição, prisões, lixões, carnaval e cultura popular.

Cultura e resistência.

Os anos mais pesados da ditadura militar fermentaram, paradoxalmente, um ambiente propício à produção cultural como forma de resistência ativa. Nem de Tal vivia no olho do furacão e captou importantes imagens do movimento artístico em Belo Horizonte: montagens teatrais, espetáculos de dança e música, performances e agitos culturais. O acervo desse período configura um rico inventário da produção artística na Beagá dos anos 70. Lá estão atores e diretores do circuito contracultural como Ronaldo Brandão, Eid Ribeiro, HélioZolini, Adyr Assumpção, Antônio Grassi, Teuda Bara, Kimura Schetino, Gil Amâncio, Carlos Rocha, Bernardo da Mata Machado; a inesquecível montagem de Carmina Burana, pelo Bale teatro Minas, com destaque para a atuação de Paulo Babreck; o Grupo Giramundo, do cenógrafo Álvaro Apocalypse e seu teatro de bonecos. A coleção reúne também o registro de espetáculos musicais que marcaram época nos palcos da cidade: Som Imaginário, Victor Assis Brasil, Wagner Tiso, Gonzaguinha, Nivaldo Ornelas, Jamil Joanes, Tavito, Frederico Oliveira (Fredera), Toninho Horta, Caetano Veloso, Ney Matogrosso. No mesmo período, sócio de Mário Drummond na Editora Cordel, Bernardo participa de um elenco de publicações multimídia de arte e publicidade.

A era do audiovisual

A partir da segunda metade da década de 1970, um fenômeno marcou a década mineira de modo especial: a produção audiovisual. Surge em Minas um grupo que utiliza a técnica para expressar ideias e conceitos. Toda uma geração de fotógrafos explorou esse filão, uma linguagem baseada em sequências de dia positivos 35mm com projeção simultânea em dois ou mais projetores de slides, alternando imagens com o recurso da fusão (efeito dissolve), de forma a criar uma ilusão cinemática que antecipava a era do vídeo digital. Os audiovisuais produzidos em Belo Horizonte na década de 70 envolviam uma produção sofisticada, com trilha instrumental, locução narrativa em edição sincronizada. Fotógrafos, roteiristas e artistas gráficos mineiros ganhavam todos os prêmios nacionais da categoria: George Helt, Murilo Antunes, Beatriz Dantas, Maurício Andrés, Luiz Sartori, Paulo Giordano. O Salão de Arte da Prefeitura de BH exibiu, em edições sucessivas, grandes apresentações da produção audiovisual mineira. A Editora Cordel produziu duas feiras produzidas pela Editora Cordel em 1973/74, a Feira Visual no Teatro do DCE, principal vitrine desse movimento. Nem de Tal produziu nesse período, em parceria com o jornalista Marco Antônio Lacerda, o audiovisual O Punk na República Tupiniquim, que ficou um mês em exibição no Museu da Imagem e do Som em São Paulo, apresentado também no Cine Vila Rica de Ouro Preto, numa histórica exibição para 1500 pessoas. O teatro veio abaixo com o nu frontal do ator Luiz Carlos Garrocho. A peça mereceu matéria na revista Veja de 21 de junho de 1978, onde Marco Lacerda afirma: “Se na Inglaterra o punk é o rock dos desempregados, aqui é o samba da multidão de desocupados que vaga pelas praças da República, pelos cinemas do subúrbio. Quem sabe algum dia esses jovens se reúnam e resolvam protestar contra a absurda organização que os obriga ao ócio?” Foi nessa onda do audiovisual que Bernardo começou a esboçar também, com René Zeferino, o roteiro de “Eco das Grutas”, que renderia edições derivadas nas décadas seguintes.

New York

Em 1979, Bernardo parte para o Rio de Janeiro e prepara sua viagem para Nova York. A intuição já não bastava. Era chegada a hora de pensar a fotografia, mergulhar na filosofia da caixa preta. Para ele, naquele momento “a fotografia deixava de ser um impulso para ser um pensamento”. Após ter submetido um portfólio ao International Center of Photography em New York, foi aceito para o Curso Avançado do ICP sob a direção do fotógrafo Gary Metz. Matricula-se em 1979 e pela primeira vez submete-se a uma disciplina de estudo: palestras com Mapplethorpe, Cartier Bresson, DuaneMichels, Cindy Shermann. Ensaios de estúdio. Laboratórios. Foto-Arte. Estudos sobre história e estética da fotografia. Na conclusão do curso, apresenta o ensaio “Avenida das Américas”, inspirado em “American Monument” de Lee Friedlander. Depois do ICP trabalha na Parsons Schoolof Design, no projeto “Alexey Brodovitch”, exibido no Festival de Fotografia de Arles. Registra uma série de imagens de rua, ícones da paisagem urbana norte-americana, sobre os quais produz portfólios durante o seminário dirigido por Gary Metz. Nas horas vagas, para não perder a velha mania do roteiro street-photography, pega sua Nikon e vaga pelas ruas. Em uma viagem com seu pai pelo interior da América, produz a série “Ontheroad”, homenagem a Robert Frank. A cada ensaio, sedimentava a consciência de que “o fotógrafo tem que ser responsável por tudo o que está dentro do quadro da foto”, como aprendera com o mestre Gary Metz. Envolve-se com a comunidade de artistas brasileiros em NY e produz uma série de retratos, com a consciência de que, no dizer de Susan Sontag, “celebridades são tão intrigantes como os párias”. Depois de quase 3 anos em NY, começa a imaginar o caminho de volta ao Brasil.

São Paulo

Fotografar nunca foi fácil para ele, mas com o aprendizado de Nova York a coisa tinha ficado mais séria, aumentou a responsabilidade. De volta ao Brasil em 1986, é contratado como fotógrafo do Caderno2 do jornal “Estado de São Paulo”, que pretendia fazer um contraponto à Folha Ilustrada na cobertura da cena cultural. Ressuscita o nome Nem de Tal e produz uma série de portfólios exclusivamente dedicados à produção da cultura, retratos de artistas, espetáculos e eventos artísticos. Teve que romper barreiras em seu estágio jornalístico, já que a documentação jornalística não lhe bastava, sentia necessidade de uma produção autoral. A referência de Richard Avedon realimentava a sua predileção por closes, sempre sob o imperativo de relacionar-se com o objeto-pessoa, não apenas fazer o registro. “Detesto que a máquina me domine, ela tem que fazer o que eu quero”, ele afirma. Com outros 12 fotógrafos, participada exposição “São Paulo Gigante & Intimista”, lançadaem 1986 pela Imprensa Oficial e levada ao Centro Cultural São Paulo no mesmo ano.

Aproveita as folgas do trabalho para finalizar o audiovisual “Eco das Grutas” e viaja pelo Brasil registrando a iconografia rupestre de várias regiões. Mergulha na pesquisa de documentos da pré-história, estuda arqueologia e mitologia. Vai à Dinamarca pesquisar Peter Lund, naturalista que obteve importantes achados arqueológicos na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Em 1985, participa da XVIII Bienal de São Paulo com as “Imagens da Pré-História no Brasil”, a convite de Berta Sichel, curadora do projeto “Entre a Ciência e a Ficção”. E produz cinco portifólios fotográficos dessas imagens, resultado do seu interesse pela arte rupestre.

Europa

Em 1989 muda-se para a Bélgica, monta estúdio em Bruxelas e dedica-se a uma série de reportagens retratando cenários europeus, publicadas na revista Ícaro, da extinta Varig, algumas reproduzidas também no jornal brasileiro Folha de São Paulo. Mais do que um mero registro de roteiros turísticos, a coleção desse período reúne belas imagens, na trilha do jornalismo cultural: os Mosteiros de Bucovina na Romênia, a Itália Etrusca, Bibliotecas ao redor do mundo e a fantástica competição de pombos-correio na Bélgica, a paisagem da região de Wallon, entre muitos outros ensaios. É contratado pela revista de saúde do Partido Socialista Belga, “La Santé et lesJours”. Em seu estúdio, produz retratos de artistas e amigos de passagem pela Europa. Já quase uma década havia passado e ele começou a tentar carta de alforria para reinserir-se no Brasil. Em breves períodos de retorno ao país, realiza dois ensaios nativos: sobre o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra no Pontal de Paranapanema em 1994 e sobre o projeto Axé, em Salvador, em 1995. Foi o rito de passagem para o seu retorno à terra brasilis.

Belo Horizonte

De volta ao Brasil em 1997, Bernardo reencontra a Belo Horizonte de sua juventude e inaugura o Centro de Fotografia Casa da Serra, onde promove cursos e exposições. Influenciado pela pesquisa de Clarival do Prado Valladares, com seu livro “Arte e Sociedade nos Cemitérios no Brasil”, Bernardo desenvolve pesquisas sobre o tema em dezenas de “campos santos”do país.Outro grande marco do período da Casa da Serra foi acuradoria da exposição “Minas:minas – Memorial e Contemporânea” em 1999, que reuniu 47 fotógrafos mineiros contemporâneos e mais de 10 acervos históricos de fotografia, de museus e coleções particulares. Todo o material do projeto, fotos e ensaios críticos, ficou registrado em catálogo impresso no formato de jornal tabloide. A coletânea foi exposta no IV Mês Internacional de Fotografia no Museu da Imagem e do Som em São Paulo, de 27 de maio a 18 de julho de 1999.

Pré-História

A iconografia rupestre dos sítios arqueológicos brasileiros sempre exerceu irresistível fascínio sobre o fotógrafo. Desde seu percurso inaugural (como Nem de Tal) e ao longo das décadas seguintes, ele registrou e catalogou um considerávelacervo de imagens da pré-história. Na virada dos anos 1970 para 1980, percorreu as grutas dos arredores da capital mineira – Lagoa Santa / Lapinha / Ballet / Cerca Grande – território de grandes descobertas do naturalista dinamarquês Peter Lund (1801-1880), considerado o pai da paleontologia brasileira. Naquele período, já tinha começado a compor com o parceiro René Zeferino o audiovisual “Eco das Grutas”. A partir daí, fotografou outros sítios naturais em várias regiões do Brasil: Pedra do Ingá-PB / Gruta do Cosmos-BA / Ilha dos Corais-SC / Sertão do Cariri-RN / Lagoa Santa-MG / Ilha do Campeche-SC. E publica uma sequência de imagens no livro “Pré-história do Brasil” (Manati, Organização Bia Hetzel / Silvia Negreiros, 272 p., 2007), onde figura como principal fotógrafo colaborador.

Diamantina

Desde o ano 2000, Bernardo Magalhães sentou praça na cidade de Diamantina, referência histórica do ciclo do diamante no alto do Espinhaço de Minas Gerais. Aqui ele pode ser encontrado tocando o seu aprazível Pouso da Chica, sem prenúncio de cura para o vício da fotografia. Participou de várias edições do Festival de Inverno da UFMG, como professor e expositor. Em 2002 assinou o roteiro do filme “Rede de Pedra”, performance de encerramento do XXVII Festival. Envolve-se com a vida cultural da cidade, realiza projetos com a comunidade, investe na restauração do patrimônio histórico e artístico, organiza imagens do seu extenso portfólio, desenvolve pesquisas de técnicas fotográficas e atua como curador de acervos que documentam a história da fotografia em Minas Gerais.

Curadoria de acervos

Além da produção autoral, Bernardo Magalhães sempre manteve um olhar acurado sobre registros de fotógrafos brasileiros, num empenho sistemático em pesquisar, catalogar e editar essas imagens. Dedica-se em tempo integral ao estudo da história da fotografia e responde pela restauração, conservação e divulgação desses acervos. Nessa trilha, o pesquisador promoveu o resgate de três filmes gravados em 16 mm, em preto&branco, entre os anos 1950/1960, do acervo de Manoel Roque, colecionador de Diamantina. Outros acervos sob sua guarda e cuidado são as coleções de Manuel Tavares, Octávio Penna, Geraldo Miranda e Christian Spangler.

Pesquisa

A arte – e o ofício – da fotografia transita entre luz e sombra, do ambiente exterior ao ambiente interior na penumbra dos laboratórios. Neste, o fotógrafo costuma mergulhar boa parte do seu tempo, absorvido pela alquimia das revelações e pela magia das interferências imaginadas. Em Diamantina, Bernardo Magalhães apaixona-se pela técnica Pin-hole e sua linguagem poética, realizando composições a cores no formato 4x5 polegadas, com a rudimentar câmera de madeira, sem lente, que ele mesmo construiu, indício dos primórdios da fotografia. Produziu também a série “Lápis da Natureza”, registro de plantas por contato sobre papel emulsionado, sem o uso de câmera, inspirado na primitiva técnica de Fox Talbot. São processos alternativos que permitem sensibilizar suportes diferentes como madeiras, pedras e metais, para imprimir imagens à luz solar. Ressalta ainda neste capítulo o projeto “Me Aspice - Sibilas na Semana Santa em Diamantina”, inspirado nas sibilas de Diamantina, véus quaresmais tecidos em grandes formatos, uma tradição secular na região.

Seu empenho de pesquisa fotográfica, com base em interferências e manipulações laboratoriais, resultou em dois outros destacados ensaios experimentais: Ficções, uma intervenção sobre fotogramas de filmes 16 mm com cenas do cotidiano de Diamantina nos anos 1950/1960. Ao manipular digitalmente vários fotogramas de uma cena, o registro real se torna imaginário, cada um com sua realidade, seu tempo e sua alma. O título é uma referência ao livro “Ficções” do escritor argentino Jorge Luis Borges; e Diamantina Cubista, uma série de superposições sobre fotos da paisagem urbanadiamantinense. Outra paixão do pesquisador são os “Fotogramas”, técnica cujo expoente maior foi Man Ray, fotógrafo e cineasta que pontificou no dadaísmo em Nova York e no surrealismo em Paris. É o fotógrafo/artista plástico no pleno exercício de sua criação.

Sávio Grossi
Diamantina, 25 de outubro de 2020